segunda-feira, 23 de março de 2009

Haja ar!

Ar
Respirar
Encher
Esvaziar
Pré-encher
SoprAr
InspirAr
VarzeAr
SoltAr
Mais ar!
E margear.

Deviveres.

A vida, mesmo,
Se encontra no devir.
É uma vida de devires
Ou um devir de viveres?

Ufa...

Estava Vera ali, na areia da praia, a observar a noite chegar. Estar só é bom para estar bem acompanhada, pensou ela, observando-se. Dá para escolher quais estímulos seguir, sem muitas vozes, perguntas, timbres. E sem ser mal educada de não querer responder. Ah! O silêncio da solidão... Eu, a menos de metros daquela moça - não sei quem me contou que se chamava Vera, talvez ela o tenha dito antes, como dizia tudo isso em voz alta -, também assistia à chegada meiga e triunfante da noite, enquanto ouvia seus pensamentos todos. Todos eles que, na sozinhez, vinham em alto e bom som. Também admirava o estar só, não como solidão, como sozinhez. Solidão pesa uma tonelada, essas letras assim combinadas. Solidão tem mais a ver com a alma que com as outras pessoas ao redor. Almas vazias independem de pessoas ao redor. Esse segredo foi uma moça que me contou uma vez, há um tempo tão grande que eu nem me lembro mais. Parecia sonho. Ela deitada numa cadeira de praia, em pleno raiar da noite, na alta boemia. Achei que estava dormindo. Ou altamente ébria. Que nada! De repente abriu um olho só e me chamou. Psiu. Foi assim mesmo que ela me chamou. Disso lembro bem. Levei um susto do demônio. Assusto fácil, de dar pulo pra cima. Pois bem, depois do pulo pra cima fui lá, como se não houvesse outra alternativa que não obedecer a mocinha da cadeira. Semblava um semblante tranquilo de quem chegou bem aos oitenta anos e sentou naquela cadeira para descansar por uns mesesinhos. Uma moça. Vivida e serena. Psiu. Vem cá menina. Hesitei lá dentro, mas não demonstrei isso nos meus movimentos. Cheguei bem pertinho, tive que me agachar e chegar bem perto daquela camisa que um dia fora branca. Me olhou bem forçando-me a olhá-la nos olhos. Como sou boba, pensei eu... Medo de olhar nos olhos. Olhei então e o medo passou. Foram milésimos de segundo que duraram segundos vários ao quadrado. Enfim ela soltou a frase. ALMAS VAZIAS INDEPENDEM DE PESSOAS AO REDOR. E começou a cantarolar uma música entre assobios e poucas palavras. Só consegui entender as partes sós. Como o pássaro que não era só. E alguém que ela queria chamar de só..

Pois bem, isso foi ela que me disse. Quer dizer, isso foi ela que acordou em mim, porque eu bem poderia ter falado o mesmo, mas o despertador dela veio antes que o meu lá de dentro. Então fiquei ali, ouvindo Vera, vendo céus, sentindo areia. Também concordava que a sozinhez podia ser uma boa companhia. E até então, achava que acreditava nessa história de liberdade para fazer escolhas, quando na minha própria e única companhia. Mais um ledo engano.

Achava que podia escolher quais estímulos seguir. Quando, de repente, eis que ali me vi sem escolhas, de repente eu era só olhos que o sol puxava e o mar também e já uma estrela no céu e do outro lado nuvens com cores mil, próprios algodões doces coloridos. E então não ouvia mais a tal da Vera. Ouvia cores, azul, verde, rosa, vermelho, laranja. Tem artista que acha que a pintura é mais organizada que a música. De nada sabem. Pois não é que minhas orelhas ficaram coloridas? Pareciam aqueles lápis de várias cores e uma só ponta com todas elas. Ouvia céu. Ouvia areia. Sentia estrelas. Via ventos e brisas, ventos e brisas. Calmaria. Via tudo. E sentia tudo. E ouvia tudo. E na minha boca, sentia um gosto gostoso de tudo bom misturado - parecia requeijão, caipirinha, brigadeiro, sorvete, pão de queijo, framboesa, picanha, ameixa, cerveja... Sentia que sentia tudo. Imagina um corpo todo seu e todo todo? Mãos, peito, orelhas, dedos do pé, cabeça, barriga. Era tudo EU. Sem soletrar, sabe? Sabe quando tudo parece fazer sentido mesmo se não faz nenhum? Quer dizer, se parece fazer é porque faz, para alguém, no mínimo. São letras embaralhadas, que algumas pessoas lêem como se fosse uma segunda língua e outras se embolam todas. Os poliglotas dessas linhasletraspalavrassentidos eram, muitas vezes, tratados como loucos. Ah! Se inveja matasse...

Achava que podia escolher quais estímulos seguir. Só quando eles não são tão grandiosos. Estímulos mais rasos nos tratam como simples orelhas, ou bocas, ou dentes, ou línguas, ou pernas, ou solas do pé, ou par de córneas. É só uma tentativa mal sucedida de estimular. O que eu sei, e isso completa uma lista de pouquíssimos ítens, é que quando fui inteira estimulada fui também conquistada. Quando o mar vira céu, que vira vários, que vira areia morna, que vira orquestra, não há como resistir. Não há sintonia que resista à vontade de querer sê-la por inteiro...